Identidade





Concebo «identidade» como a combinação entrelaçada de referências que assimilámos ao longo da vida e a que recorremos perante as diversas circunstâncias com que deparamos no nosso dia a dia. Esta identidade, aquilo que somos, advém de uma combinação altamente improvável de circunstâncias que nos torna únicos.

 

Por muito que nos esforcemos por classificar as pessoas por categorias mediante a identificação de características idênticas, há sempre algo que as distingue e por isso as torna únicas. Cada pessoa é exclusiva, um modelo original. Isto é importante para a medicina em geral, para a psicologia, psicoterapia, sociologia, e outras ciências. É também muito importante para o utente/paciente que pede que ouçam a sua queixa em particular e o ajudem tendo em conta a singularidade da sua identidade.

 

Saber o que somos, como somos, e sentirmo-nos livres para ser como somos, é fundamental. Ilustrando isto, D. W. Winnicott considera em O Brincar & a Realidade (1971)(*) que, mais que interpretações argutas, a psicoterapia equivale a devolver ao paciente, a longo prazo, aquilo que o paciente traz (reflectir o que há para ser visto), tendo em mente que se tal decorrer bem, o paciente descobrirá o seu próprio eu (self) e será capaz de existir e sentir-se real. Sentir-se real, descreve Winnicott,  é descobrir um modo de existir como si mesmo, relacionar-se com outros como si mesmo e ter um eu (self) para o qual retirar-se, para relaxamento.

 

Todo o indivíduo beneficia em saber quem é, como é. Ganha equilíbrio psíquico por conhecer que modo de ser faz sentido para si; que imagem de si lhe apraz dar e é consonante consigo. Com que características de outros se identifica e o que é que o distingue como único.

 

E o que somos nós? De que somos feitos? Como chegamos ao que somos? Somos aquilo que desejaram que fossemos, aquilo que fizemos connosco, e aquilo que os acasos da vida nos permitiram ser. Somos um legado genético, um contexto social, uma história de família, e um percurso pessoal. Somos idênticos a outros em imensas particularidades e distintamente únicos na particular combinação que corresponde àquilo que somos. Aquilo que se é, resultará da combinação da história familiar, da cultura de um país, e do contexto em que surgimos. Dos pais ou substitutos que nos calharam, da nossa constituição genética. Dos episódios de vida, das pessoas com que nos cruzámos, da forma como este acontecimento ou aquela sequência de acontecimentos ficaram imprimidos em nós, e desse modo determinaram aquilo a que somos sensíveis, aquilo que esperamos de nós e desejamos para nós, bem como aquilo por que ansiamos ou aquilo que tememos. Esta combinação altamente improvável de circunstâncias foi influenciando a forma como nos habituámos a reagir e defender.

 

Somos uma combinação particular, uma selecção. Daquilo que vemos à nossa volta e imitamos porque queremos, ou copiamos sem dar por isso. Somos um rol de impressões, imagens e sensações que se tornam significativas e dão forma à nossa história, e desse modo à nossa identidade.

 

António Coimbra de Matos (**) chama a atenção para a influência relativa de três processos distintos na construção da identidade de cada um, três dimensões que se conjugam e complementam: (1) incorporação-assimilação da identidade atribuída (explícita ou implicitamente) por aqueles com quem o indivíduo mais se relaciona; (2) identidade resultante da descoberta e experiência pessoais; e, (3) identificação do indivíduo a outro que serve de modelo de identificação.

 

 A que pode exercer influência de forma mais disfarçada, embora com um peso enorme, será a da identidade atribuída por aqueles com quem o indivíduo se relaciona (é bonito; simpático; um bom menino; um menino mau…). A que mais contribui para a originalidade de cada um será a que resulta da descoberta e experiência pessoais.

 

Muito se jogará na infância por ser o começo, a base do que se vai compondo. Mas a parada continuará vida fora. Não somos necessariamente imutáveis. Vamo-nos completando, reciclando e reconstruindo.

 

 Dora Bicho

 

(*) Tradução de 1975, Rio de Janeiro, Imago Editora.

 

(**) Explicação presente em vários textos do autor. Entre eles, Percursos da Identidade: Processos Transformadores. Publicado originalmente na Revista Portuguesa de Pedopsiquiatria, nº 11, 1996, pp.23-33.


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